sábado, 5 de setembro de 2020

DOM PEDRO

Zelar pela natureza é promover vidas! Universal é o clamor por um relacionamento mais respeitoso para com a natureza! Lamenta-se profundamente a polarização desta óbvia verdade. Reduzida a fundamentações ideológicas, a busca pela preservação e promoção do meio ambiente transforma-se em lutas de poderosos – políticos e econômicos – contra forças ditas reacionárias – antiprogressistas e ambientalistas – que ao fim e ao cabo terminará por prejudicar a todos. As formidáveis reservas naturais, em especial o solo brasileiro, demandam uma profunda reavaliação da gestão ambiental. Cuidar do enorme potencial dos ativos agrícolas do país é do interesse de todos. O zelo pela preservação do ambiente é considerado, hoje, critério básico para a ampliação e fortalecimento das fronteiras comerciais. É, igualmente, referência de controle de qualidade. O imenso patrimônio verde inspira iniciativas de produção inclusiva e sustentável. Afinal, não há como separar o respeito pela terra do necessário cuidado para com a saúde e o sustento de pessoas e nações. É claro que uma agricultura preocupada com o meio ambiente contribui positivamente para uma sobrevivência saudável tanto de consumidores como de produtores e, por lógica consequência, para a saúde econômica do país. Ocupar-se com o complexo desafio do meio ambiente não representa, de forma alguma, bandeira ideológica de grupos alienados e conservadores. Significa, ao contrário, um legitimo anseio por justiça e dignidade. Urge reavaliar, com serenidade e discernimento, as gestões com o meio ambiente, com a casa comum de todos os seres humanos. Para o crente, respeitar a criação e promover de maneira sustentável, justa e universal suas potencialidades representa o culto mais simples e exprime a gratidão mais reverente ao Criador! Dom Pedro Casaldáliga, falecido em 8 de agosto passado, foi, indiscutivelmente, um dos desses crentes que por atitudes, discursos e escritos captou a mística da natureza e compreendeu a sublime intenção do Criador de presentear as riquezas naturais a todas as pessoas, sem distinção. Sua vida e seu ministério foram pautados pela verdade fundamental: os bens da natureza, terra e produção, não podem ser monopólio de alguns. Muito menos oportunidade para exploração e dominação prepotente. São dádivas universais! A formidável energia da natureza deve ser canalizada para produzir vida abundante e prosperidade para todos. Nascido na Catalunha, veio ao Brasil como missionário e vestiu, sem costura nem emenda, a túnica de pessoas injustamente marginalizadas. A inspiração para viver pobre em meio de pobres se fundamenta no evangelho. Dom Pedro foi, acima de tudo, um místico. Sua luta nada tinha de ideologia classista. Ao contrário, encontrava-se totalmente inspirada no Evangelho e no exemplo de Jesus Cristo, que rebaixou-se e humilhou-se para tornar-se próximo de todos e a todos! Em especial, aos que se encontravam à margem da vida! Lucro ganancioso e Evangelho são valores excludentes! Somente uma profunda espiritualidade explica a incansável e despretensiosa busca por justiça e dignidade. Ardia nele o fogo dos profetas que, seduzidos pelo projeto divino, entregavam-se sem reservas ao cumprimento da proposta de Deus. Belo e precioso é o dom da criação. É o primeiro e mais autêntico ‘livro’ escrito pela mão divina, séculos antes da grafia! Místicos e poetas reconhecem os digitais divinos na sublime obra da casa comum. Na alma tocados pela divina e gratuita generosidade, empenham-se apaixonadamente para enaltecer as formidáveis riquezas naturais. Coerentes e destemidos, desdobram-se para que os benefícios da criação recuperassem sua destinação original, universal e justa. Profeta, poeta e místico foi Dom Pedro, comprometido colaborados no cuidado com a criação!

sábado, 29 de agosto de 2020

AMÉM!

Autorizadas estão as celebrações presenciais! Alegria! Com a mudança de fase no Plano São Paulo, aguardava-se a liberação das celebrações presenciais da missa. A flexibilização das medidas restritivas não deve ser entendida como se o perigo de contágio cessasse ou estivesse controlado. O Covid-19 é um patógeno agressivo, oportunista e traiçoeiro. Advertem os infectologistas, o vírus continua ansioso em fazer novas ‘amizades’! Urge, portanto, manter rigorosa e constante vigilância. Com tristeza observa-se que muitos persistem em fazer pouco desta pandemia, desdenham-se do isolamento, negligenciam o uso de máscaras e descuidam de hábitos sanitários. Mesmo com o advento das vacinas, esses hábitos de higiene e proteção serão incorporados no cotidiano como indispensáveis ferramentas para um convívio saudável. A normalidade será diferente. O forçado isolamento litúrgico serviu como preciosa oportunidade para avaliar a autenticidade da fé que anima as práticas religiosas. Com frequência ouvia-se o lamento queixando-se da falta da Comunhão Eucarística. Filtrando com critério a forçada abstinência, não fica tão claro se o que anda fazendo falta é a mística eucarística ou simplesmente o rito da comunhão sacramental. Ensina o catecismo que a celebração eucarística abrange muito mais que a comunhão das espécies consagradas. A missa, em sua essência e integralidade, é uma liturgia comunitária que, em união com o Senhor ressuscitado, celebra a salvação. Os vários ritos induzem a expressar e acentuar esta dimensão mística. Já pelo fato de a assembleia estar reunida em nome do Senhor, Jesus está presente no meio dela! Congregada, a comunidade já vive a primeira experiência de comunhão redentora! Intensifica-se a intimidade plena com o Senhor na proclamação, na escuta e na partilha de Palavra. Nas leituras bíblicas, especialmente no Evangelho, é Jesus que fala e interpela a assembleia. Ao aderir à Palavra ouvida, a comunidade une-se a Cristo, Pão da Palavra descido do céu: quem crê em mim tem a vida eterna, nunca mais terá fome e sede. A presença real do Senhor Jesus, na celebração eucarística, não se restringe somente às espécies consagradas. Ele está realmente presente na reunião dos fiéis, na proclamação da palavra e na consagração do pão e do vinho, em vista da sua consumação. Insiste o catecismo que comunga Cristo de verdade o fiel que a ele adere incondicionalmente. Ao reunir-se com os irmãos em espírito fraterno genuíno já se está em comunhão Cristo. Ao ouvir e acolher sua Palavra proclamada na liturgia comunga-se igualmente o Cristo vivo. Ao receber as espécies eucarísticas em sintonia com a Palavra meditada e assumida completa-se a permanência em Cristo. Entende-se que a comunhão com o Senhor Jesus se dá em várias instâncias, alcançando seu ápice na consumação dos elementos consagrados. Comungar as espécies eucarísticas sem estar em comunhão de mente, coração e alma a Cristo não passa de um ritual piedoso. Estanque, muitas vezes! Une-se a Cristo no ato de recebimento do pão consagrado quem já está em sintonia íntima com ele na reunião dos irmãos e na escuta reverente da Palavra! Pretensa ilusão imaginar estar se unindo a Cristo quem faz pouco da reunião com os irmãos e quem não se aplica na escuta da Palavra! Mesmo com a autorização das celebrações presenciais, muitos, justificadamente, ainda receiam aglomerar-se. Persiste o perigo de contágio! Nem por isso, porém, devem se sentir privados da Comunhão. Mesmo unidos, virtualmente, com seus irmãos, na condição de ouvintes atentos e receptivos da Palavra, comungam Cristo de verdade. Chama-se isto de Comunhão espiritual. Aos fiéis que involuntariamente se veem privados de consumir as espécies eucarísticas, assegura-se a faculdade de viver a mística eucarística, verdadeira e santificadora. De pronunciar, em suma, de forma reverente e comprometida, o eucarístico amém!

sábado, 22 de agosto de 2020

CRIANCINHAS

O aborto praticado foi ato acertado? Ou foi a saída mais conveniente? A polêmica, compreensivelmente acalorada por injunções de cunho religioso, legal, social e emotivo, envolve a intervenção a que foi submetida uma menina de dez anos após descobrir-se estar grávida, consequência de estupro. Em situações conflitivas como esta, vale a recomendação do sábio Agostinho: qualquer angústia ou tribulação que sofremos deve ser encarada como aviso e como provocação à correção. Algumas premissas se fazem, pois, necessárias para desenvolver uma reflexão serena, madura e proveitosa. Livre de preconceitos gratuitos e moralismos inconsequentes! Abre-se mão, primeiro, de julgar pessoas. Somente Deus pode julgar porque somente ele conhece o íntimo das pessoas. Sua justiça, urge lembrar, é sempre temperada pela misericórdia! A segunda premissa fundamental e orientadora é a predileção que o Criador guarda pelos pequenos. O Filho Unigênito, Jesus Cristo, deixou clara a preferência pelos pequenos ao dizer que somente quem a eles se assemelha é que se pode almejar participar da vida nova. Externou sua indignação diante de quem mancha a inocência infantil ao indicar fosse lhe amarada uma pedra de moinha no pescoço e ser jogado no mar. A análise desse horripilante episódio deve ser pautada por este amor incondicional que, no caso em pauta, envolve duas crianças. Com cinco meses, o feto já é uma criança desenvolvida. Aliás, é sempre bom lembrar a informação que vem do campo científico: desde o momento da concepção já se tem um ser humano. Na fecundação todas as particularidades individuais já estão definidas. O que acontece em seguida é apenas o desenvolvimento natural de um ser vivo. Confirma-se, neste caso, tratar-se de duas crianças igualmente amadas por Deus! Paradoxalmente, no caso do aborto, o ventre materno, supostamente o lugar mais sagrado para a evolução e preservação da vida, transforma-se em espaço de alta vulnerabilidade. Emerge, com cruel dramaticidade, a inicial pergunta: a decisão de abortar, neste caso, foi motivada por um ato de amor ou por conveniência pragmática? Argumenta-se, corretamente, que uma menina, na tenra idade de 10 anos, não reúne condições para levar a gravidez adiante sem sério risco para sua saúde física, psicológica e afetiva. É sempre bom lembrar que mesmo na moral cristã quando se trata de defesa da vida é legitimo apelar para atitudes extremas. Não se é moralmente culpado por atirar em agressor diante de um real perigo de morte, própria ou do semelhante. A legislação civil vigente autoriza o aborto quando se trata de estupro e quando existe real perigo contra a saúde da gestante. Se a legislação vale para uma mulher adulta, que dirá quando se trata de uma criança. Entra-se aqui em terreno delicado. Reserva-se à mulher violentada a decisão de prosseguir ou não com a gravidez. Terrível é o drama da escolha, acarretando sempre impagáveis consequências. Adulto é responsável por seus atos e em caso de extrema humilhação, como é o caso de estupro, é preciso avaliar com compreensão e misericórdia. Desumano é insultar. Transformar o drama em disputa ideológica é crassa insensibilidade, totalmente contrário ao evangelho! Se existe alguém que sabe compreender e compadecer-se dos dramas humanos, este alguém chama-se Deus! E quem é de Deus deve saber agir como ele! Neste caso particular, questiona-se quem tomou a decisão pela menina e motivado por que interesses? O que pesou para se tomar uma decisão desse vulto? Alega-se que ao autorizar o aborto, por motivos de saúde, cuidou-se também de livrar a menina de futuros traumas resultantes dos infames abusos sofridos e da terrível experiência do estupro. Atendimento pastoral e profissional com adultas que passaram pelas humilhantes traumas de abusos e aborto confirmam serem indeléveis as experiências. Que dirá com crianças! Descriminalizar atende a apenas um lado do problema. O Estado preserva a saúde física de meninas gestantes. Cuidará com a mesma presteza e diligência da sua saúde afetiva e psíquica? A decisão de abortar foi motivada por um ato de amor ou por conveniência pragmática? Quando afirmou que o sábado era para o homem e não vice-versa, o Senhor Jesus oferecia preciosa bússola para ajudar a navegar com segurança e discernimento em situações conflitantes. Toda legislação, moral ou civil, encontra seu sentido quando sujeita ao genuíno bem estar do ser humano. Emerge colossal desafio para a sociedade, uma vez que se sabe que ocorrências como esta acontecem semanalmente pelo país! É pelo aborto que se conserta ou se camufla a brutal realidade? Se é por consideração que se justificam intervenções invasivas em crianças, então a sociedade precisa acordar do seu torpor, despir-se de seu cinismo e permitir que este mesmo amor a impele a articular-se para oferecer aos pequenos um digno, seguro, decente e honesto futuro! Das criancinhas é o reino dos céus ...

sábado, 15 de agosto de 2020

PRUMO

PRUMO “Onde está você”? É a primeira indagação que se encontra na Bíblia! Adam e Eva se escondem após desobedecerem ao mandamento divino. O Todo-poderoso, estranhando a ausência física do casal, indaga por sua localização. Fica evidente o alcance existencial desta pergunta. A intenção do Criador, ao indagar pela localização, era provocar o Homem a refletir sobre as consequências de seus atos. Não era o Criador que precisava saber onde se encontrava Adão. Era o Homem que necessitava saber onde se encontrava existencialmente. Ao imaginar esconder-se de Deus, na realidade, Adam estava se escondendo de si próprio. E Deus queria chama-lo de volta à realidade, à original harmonia. Ao tentar se esconder, o casal buscava camuflar sua identidade, retardando, consequentemente, sua própria libertação! O ato rebelde gerou conflito onde antes havia harmonia, confusão de conceitos onde antes havia ordenamento. A nudez foi novidade para o casal, gerando perplexidade e medo diante da descoberta. Difusa persiste a sensação: a ‘nudez’ desconcerta e muitos tentam encobri-la. Desconhecem quem realmente são! Fundamental possuir consciência clara sobre a própria identidade, caso se queira genuinamente avançar na vida de forma amadurecida. A pergunta do Criador é atemporal! É universal! Todo ser humano é confrontado, e de uma maneira constante, com a existencial provocação: onde estou? Ignorar esta indagação, como também fugir de responder a ela com transparente sinceridade, representa uma gravíssima falha de personalidade e um sério atraso no processo de amadurecimento. Previsível consequência do receio de se encarar com maturidade é a adoção de comportamentos ambíguos, de escolhas dúbias. Com evidentes consequências desastrosas tanto para a própria vida como também para a vida alheia. Dissimulando a própria identidade passa-se a viver de mentiras existenciais, de inconsequentes e frustrantes fantasias. A prolongada alienação da própria identidade, embora facilmente camuflada por agitações e frivolidades, torna-se paulatinamente fardo insuportável para o próprio indivíduo, abrindo caminho para a depressão ou para tentativas desesperadas de preencher artificial ou quimicamente o vazio existencial. A pandemia emerge como excepcional oportunidade para quem deseja conhecer onde se está e se dispõe a precisar o rumo da própria existência. Situação singularmente propícia para compenetrar-se acerca do que se espera de si neste particular, e dramático, momento da história. A quarentena obriga a muitos a estarem onde preferem não estar! Espaços que costumavam preencher tempos e atividades que serviam para fugir de indagações indigestas encontram-se impedidos. A incômoda diminuição da marcha, emerge, paradoxalmente, redentora, caso se pretenda encontrar-se consigo próprio, definir onde se está! A antipática redução do ruído se faz providencial, caso se queira redescobrir o sentido da existência. Indispensável a quietude, caso se queira recuperar o prumo original. O retiro cívico salta como preciosa oportunidade para saber onde se está e se onde se está é onde se deveria estar! Este é o espaço! Agora é o momento! Permita ecoar a indagação: Onde você está? Longe de ser inquisitiva ou moralista, a indagação é intencionalmente terapêutica. Restauradora! A hora é para ouvir a consciência! O espaço é para se ver, sem maquiagens! Conhecer e assumir a própria identidade e agir de acordo representa reconquistar a paz da alma, o prazer em viver!

sábado, 8 de agosto de 2020

ALDEIAS

ALDEIAS À labirinto assemelha-se o tempo atual! A desorientação, em vários campos da vida, desde o político, passando pelo econômico, familiar, afetivo, religioso inclusive, é generalizada. Os mais apressados jogam a culpa na pandemia. Sem dúvida, o Corona infectou não somente a saúde física das pessoas, como também chacoalhou a sociedade. Refletindo com serena objetividade, todavia, conclui-se que o vírus, fora do aspecto ambulatorial, apenas escancarou descalabros em uma sociedade já gravemente enferma. A desigualdade social já existia, estava convenientemente camuflada. A pandemia, ironicamente, impõe uma troca de máscaras: faz cair as de dissimulação e recomenda as de proteção sanitária. A sociedade caminhava faceira, imaginando estar avançando em sua trajetória progressista quando, de repente, percebeu-se perdida, como em um labirinto. Tomada pelo pânico, quer descobrir logo o caminho da saída. É preciso voltar, e com urgência, a respirar e a viver. No entanto, como se sabe, não há remédio simples para morbidades complicadas. É óbvio que a humanidade vai encontrar a porta de saída. É questão de tempo o desenvolvimento de imunizantes e vacinas. A questão fundamental que se apresenta, todavia, é quanto ao perfil de humanidade que emergirá desse labirinto. Uma das verdades fundamentais que a pandemia faz a sociedade perceber é a intrínseca e vital dependência que o ser humano tem do semelhante. Por mais que se queira viver distante, por mais que se imagina autossuficiente, na realidade, ser humano algum é uma ilha. Pelo bem e pelo mal, as pessoas são interdependentes. Caso se teime em preservar os disparates, caso se desdenhe reordenar prioridades, há de se lamentar profundamente o desperdício de uma providencial, embora nada agradável, oportunidade de purificar e elevar o nível de relacionamentos. Não existem bolhas suficientemente impermeáveis a impedir contágios de influências invasoras. Propícia é a hora para a humanidade se reavaliar em vista de uma auspiciosa revitalização! Confiável indicativo para saber se as pessoas estão realmente aplicadas em se reeducar é analisar a maneira como se comportam enquanto perambulam pelas alamedas do labirinto. Caso persistam as trombadas, claro indicativo de posturas egocêntricas e oportunistas, a probabilidade das pessoas saírem desnorteadas do labirinto permanece alta! Se não acontecer uma mudança de paradigma, a lamentável conclusão a que se chega é que a humanidade passou por uma experiência dolorosa, sem aprender nada. Sem mudança de mentalidade, sobrará apenas tétrica memória! Entre os indígenas, firme se encontra a convicção de que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Esforços isolados, por mais valiosos e louváveis, permanecem insuficientes para fazer surgir a tão decantada nova normalidade. Urge, portanto, formar, ou integrar-se à, aldeias de colaboração, em que indivíduos e famílias que comungam os mesmos ideais e que vivem em busca dos mesmos objetivos possam interagir. Nesses ambientes comunitários, adultos, e especialmente crianças, encontram espaço e estímulo ideais, para evoluir saudavelmente, com potencial para marcar presença restauradora numa sociedade cambaleante. No convívio coletivo, verdades adquirem feições. Princípios têm nome pessoal. Ensinamentos se revestem de exemplos concretos de vida, com forte apelo de atração e emulação! Alvissareira se torna a saída do labirinto a medida que se invista nessas redes de boa cumplicidade. Longe de formar bolhas a pairar sobre a sociedade, essas aldeias de boa vizinha agem como células vivas inseridas com naturalidade no tecido social, vetores de uma segura e próspera revitalização.

sábado, 1 de agosto de 2020

MORRICONE

A sequência é dramática! Envolvente! O capitão Rodrigo Mendonza, inescrupuloso mercador de escravos, fratricida e homicida, arrepende-se de seus erros e aceita o chamado à conversão. Junta seus pertences e se integra à comunidade de padres jesuítas, missionários entre indígenas às margens do rio Iguaçu. Carregado de espadas e armaduras, apego evidente a um comportamento violento e cruel, segue os missionários na subida da íngreme encosta. O destino é uma aldeia indígena onde os missionários catequizam os nativos. O fardo, pesado e desajeitado, impede ao capitão acompanhar o passo dos religiosos. A força da água das cataratas bate inclemente na cara, encharca a roupa e torna a escalada escorregadia, arriscada. Desequilibrado, o capitão quase cai, se não fosse salvo pelo padre Gabriel, irretocável participação de Jeremy Irons. Valente e determinado, o penitente persiste. Ao alcançar o topo da encosta, exausto pela fadiga e vergado pelo peso das armas sanguinárias do bárbaro passado, é reconhecido pelos índios. Um guerreiro corre e ameaça cortar lhe o pescoço. O cacique, todavia, intervém e ordena ao índio cortar a corda da trocha, livrando o visitante do incômodo e imundo fardo. Armas e armaduras, despencam rio abaixo e o capitão, exausto, mas finalmente livre e perdoado do seu sanguinário passado, desaba a chorar. Esta emblemática sequência distingue o filme A MISSÃO, dirigido por Roland Joffe. Robert de Niro vive, magistralmente, o personagem do capitão Rodrigo. Dizia-se, na época, que ele brigou pelo papel! A sequência é, sem dúvida, uma das mais belas e densas catequeses cinematográficas a representar o caminho de conversão. Pecado, perdão, redenção! Enquanto se persiste ligado ao passado, o caminho da conversão permanece árduo, escorregadio. Somente largando definitivamente o passado, deixando a água levar e lavar, é que se experimenta a alegria da conversão, a libertação almejada. Complementa o processo da cura da alma, a experiência e a convicção da gratuidade do perdão. A soberba arrogância se vence pela generosidade da misericórdia! A catequética sequência é enriquecida pela primorosa trilha sonora, composta por Ennio Morricone. O discurso musical expõe e acompanha a luta interna do personagem e induz o espectador a se envolver em sua saga. Começa evocando a célebre melodia – o tema de Gabriel – que, no filme, abre a porta da evangelização junto aos indígenas. Introduz, então, as cordas, evoluindo do grave ao suave ate chegar às madeiras, desembocando nos vigorosos sopros, reservando à percussão a vibração dramática. Emerge, então, o coral, adicionando intensidade e emoção à peça até alcançar o exuberante final! Sem esquecer a sutil, mas marcante presença dos atabaques, a dar tempero tropical à magnífica trilha sonora. Morricone oferece ao público sua leitura musical do divino perdão e da redentora misericórdia. Extasiante capolavoro! Críticos e amantes do cinema lamentam a minguada aclamação da película. Comenta-se, inclusive, que a culpa reside, paradoxalmente, na primorosa partitura de Morricone. A peça se autossustenta, razão porque encontra-se incluída em várias concertos eruditos. O maestro italiano presenteou ao mundo outras inesquecíveis composições. Quem não se emociona com a partitura do filme CINEMA PARADISO! Quem não se rende diante do lirismo do tema de Deborah em ONCE UPON A TIME IN AMERICA, para mencionar apenas mais duas aclamadas composições! Curioso, o único Oscar que Morricone ganhou foi como reconhecimento pelo conjunto da sua obra musical! Escreveu um admirador norte-americano no dia do falecimento do compositor: em tempo de mortes causadas por um terrível vírus, que, manipulado por interesseiros políticos, anda provocando luto em famílias, conflitos entre irmãos e confusão mental por conta de deliberadas mentiras, possam as composições do mestre italiano devolver equilíbrio a mentes desorientadas e serenidade a alma aflitas! Sua música, mais do que nunca, inspira e acalma! Grazie, maestro!

sábado, 25 de julho de 2020

PROFETA NOVO

Alguns capítulos da Bíblia podem vir a ser reescritos! Ou simplesmente suprimidos! E não é por motivos dogmáticos ou canônicos, mas, sim, por imposições culturais. Ganha destaque um movimento conhecido como ‘a cultura do cancelamento’. Este movimento quer boicotar qualquer tipo de expressão ou manifestação que questiona ou contraria formas atuais de comportamento ou de pensamento considerados como avanços civilizatórios. Observou-se recentemente o ataque a alguns monumentos de personagens históricos relacionados com a época da escravidão. Num passado não muito distante, a mesma postura vândala foi adotada pelo califado muçulmano ao destruir sítios de culturas persas milenares, reconhecidos como patrimônio da humanidade. Nos Estados Unidos, uma corrente sugere substituir, nas igrejas, imagens de Jesus Cristo e de nossa Senhora em pele branca. Entre nós, já houve gente querendo censurar Machado de Assis por insinuações racistas. A mentalidade inspiradora deste movimento é perigosa e prejudicial. Injusta e obscurantista. É perigosa porque patrulha quem se arrisca a discorrer sobre fatos ou costumes do passado, vistos, hoje, como impróprios ou mesmo condenáveis. Ao abordar temas polêmicos, mesmo colocados dentro de seu contexto histórico, arrisca-se sofrer agressivas censuras. Manifestar opiniões e discorrer sobre teses consideradas de alguma forma ofensivas a um determinado grupo ou movimento, mesmo em âmbito estritamente acadêmico, está ficando constrangedor. O prejuízo para a cultura em geral, ao se vingar esta mentalidade, fica óbvio, pois tolhe, de forma arbitrária, a liberdade de debater ideias. A história, tanto da filosofia como da cultura em geral, confirma que o avanço em toda área de conhecimento deu-se justamente a partir da livre discussão de opiniões e pensamentos. Alguns erros ou equívocos foram inclusive determinantes para o progresso da ciência. Garantir a liberdade de manifestar pensamento ou de criticar determinadas teses – seja qual for a área do debate – é imprescindível para o amadurecimento da ciência. Cercear opiniões e calar pensadores em nada contribui para o avanço da cultura. Escritores e pensadores, como também editoras e jornais, estão se sentindo pressionados e perseguidos, ao permitir a abordagem de teses controversas. Emerge uma tensão melindrosa acerca do que se pode ou não escrever, do que se pode ou não abordar em uma palestra! Estreitar o horizonte do debate sério e respeitoso, cercear a salutar pluralidade de posições e teses, é cultural e flagrantemente empobrecedor! Defender o ponto de vista não autoriza, por óbvio, agredir ou insultar quem pensa ou é diferente. O que sobressai na escalada dessa tal ‘cultura do cancelamento’ é justamente o viés intolerante. Tacanho! Fica proibido divergir. Levada ao extremo, esta ‘cultura de cancelamento’ pretende apagar ou reescrever a história. Propõe varrer da memória acontecimentos passados, anteriores escolas de pensamento e fórmulas de expressão considerados, sob a moderna lupa de análise, ofensivos, agressivos ou obsoletos. Exige o equilíbrio intelectual que formas de expressão, estilos de vida, jeitos comportamentais, sejam analisados e julgados dentro do contexto social, econômico e literário em que aconteceram. Avaliá-los fora do contexto conota curta inteligência. A civilização, felizmente, avançou. Os relacionamentos evoluíram. Abolir figuras históricas porque seu comportamento ou seu discurso destoam dos atuais parâmetros representa grosseiro despreparo. Destruir imagens, vandalizar monumentos, queimar livros, banir estudos de autores controversos, porque representam concepções que ferem a moderna sensibilidade de grupos e movimentos é clara admissão de indigência cultural. Não se amadurece sem memória! Nenhuma surpresa, caso esta mentalidade revisionista progrida, aparecer algum profeta novo, auto-ungido, a determinar uma corrigida e atualizada edição da Bíblia!